Vivemos algo de extraordinário no mês de outubro, ao longo dos poucos dias que tínhamos para a campanha do segundo turno das eleições presidenciais (e algumas para governos estaduais). Um enorme impulso de uma militância de esquerda e democrática saiu às ruas, ancorou nas esquinas, praças e pontos de circulação popular das cidades, montou comitês de campanha, produziu e pagou materiais de divulgação, dedicou muitas horas e energia em diferentes frentes – nas ruas, nas redes sociais, na produção de textos, na construção de elos de comunicação que permitissem fazer frente à avalanche de propaganda falsificadora bolsonarista.
E isso apesar do enorme baque causado por não ter ocorrido a vitória de Lula no primeiro turno, o que fora acenado como uma possibilidade concreta, baque ainda acrescido por diferenças expressivas nas pesquisas eleitorais que não conseguiram apontar um crescimento importante na votação de Jair Bolsonaro.
Foi preciso enfrentar o medo de ir às ruas, medo legítimo dada a violência que experimentamos nas eleições de 2018 e que se multiplicou sob o desgoverno Bolsonaro; medo pelas ameaças e ataques que recorrentemente eram lançadas contra os “petistas” e por ações reais de intimidação e chantagem que muitos experimentaram.
Medo de portar adesivos no corpo, razão suficiente para ataques e hostilidades, o que configurou um primeiro turno espantosamente descaracterizado e primeiros dias da campanha do segundo turno também tímidos.
Quero realçar o papel fundamental cumprido por muitos setores da esquerda para além do PT – que em alguns casos estava ainda bastante tímido, mas também retomou a atividade e a participação em manifestações – que não apenas impulsionaram o início da campanha, mas trouxeram de volta as práticas e experiências de militância para esta campanha. O PSOL teve uma atuação importantíssima, desde a primeira hora. Outros partidos sequer faziam parte da coligação petista, mas lançaram-se na campanha eleitoral como momento fundamental da luta antifascista. O antifascismo mostrava uma força fenomenal, reduzindo os sectarismos e permitindo um encontro entre forças diversas.
As novas gerações tiveram ao menos uma noção do período da grande campanha eleitoral de 1989, quando a própria militância foi às ruas, quando ela própria sacudia as bandeiras (e não trabalhadores precarizados a soldo dos partidos), quando voltaram a subir – diretamente, e não por meio de cabos eleitorais ou de funcionários – as ruelas e favelas. Revivemos os tempos da militância quando produzimos diretamente materiais, insistimos com a campanha para divulgar programas e projetos, o que finalmente ocorreu; muitos anonimamente atuaram nas redes sociais.
Inúmeras organizações – movimentos sociais populares, sindicatos, associações profissionais como juristas, jornalistas, professores, cientistas etc. – se uniram à campanha para propor materiais, unificar as pautas, divulgar informações fidedignas e criticar as falsificações que corriam soltas. Em torno de 10 dias tínhamos uma verdadeira rede de comunicação – ainda impulsionada pela adesão de personagens como Janones, muitas vezes de cunho ambivalente, mas que contribuiu para disseminar uma pauta comum e manteve o contato durante os dias que antecederam as eleições.
Um balanço mínimo fundamental a tirar: tivemos militância ainda pequena, mas aguerrida nas ruas e nas redes, estimulando contato entre forças políticas variadas e com a população trabalhadora; unificação frouxa mas real de pautas e de programas; intensa circulação de informações fidedignas.
Infelizmente, desde o dia seguinte às eleições, esse processo vem sendo desativado, em que pesem as exortações à manutenção dos comitês de campanha.
O risco é repetir o que já vivemos – um profundo descrédito na política, descrédito que atinge a militância (muitos jovens, mas reunindo pessoas de todas as idades, com muitas gerações envolvidas, inclusive em alguns casos, comitês de “cabeça branca” com excepcional atividade), mas atinge sobremaneira os diversificados setores populares que foram contatados e foram a maioria eleitoral.
Como era esperado, no mesmo dias das eleições as festas foram formidáveis, mas também começaram as mobilizações de cunho fascista, em duas direções principais: o trancamento de estradas, com o apoio da Polícia Rodoviária Federal, e concentrações diante de quarteis, com a complacência de militares e de policiais. A última comunicação em escala massiva, proveniente de várias das redes até então articuladas na campanha, sugeria não mencionar e não replicar as informações sobre tais atos fascistas.
Não se trata aqui de debater se a proposta era correta ou não, o que seria outra discussão. O que pretendo destacar é que esta foi a última comunicação coletiva. Os espaços anteriores de unificação deixaram de funcionar e de pautar. Três elementos fundamentais começavam a se diluir: os centros de verificação das falsificações bolsonaristas; uma articulação em rede de centros difusores de informações consolidadas; e, finalmente, apresentação de pautas e de ações políticas coordenadas.
Diversos movimentos sociais e frentes de luta – a destacar o MTST e o MST – insistiram corretamente na importância da manutenção dos variados comitês populares que se forjaram nessas eleições. Mas sem fornecimento de pautas, de materiais, de informações e de combate efetivo à desinformação que perdura nas redes e nas mídias proprietárias, na prática assistimos ao desmonte quase imediato de quase todas as lutas que penosamente organizamos entre 3 e 30 de outubro.
Relembro que não se tratou meramente de uma comunicação profissionalizada organizada desde o PT, mas de uma conexão prática entre inúmeras agremiações. Sua manutenção não exige a instalação de uma empresa de comunicação nem mesmo uma central pública, mas a perseverança na luta popular, a confiança naqueles que lutaram, a continuidade de uma coligação amplíssima mas popular, antifascista e democrática. Como sabemos, a luta antifascista não acabou, nem no Brasil nem no mundo.
Caso contrário, deslizaremos para a pauta estabelecida pelas mídias proprietárias, pelas redes sociais também elas proprietárias, e pela ilusão de que cada um que fale em rede social tem o mesmo calibre e a mesma importância, esquecendo a configuração de classes da sociedade. Deslizaremos para um novo desalento com as formas de organização popular e com sua potência de enfrentar os poderosos. E perderemos forças na luta antifascista. E o fascismo precisa ser derrotado pelas massas.
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Virgínia Fontes é historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)